“Vox Populi, Vox Dei”

Sempre fui um questionador do senso comum e do consenso emotivo. As multidões são formadas pela soma das neuroses e loucuras humanas, sendo o recurso mais perigoso quando acionado para fins de lutas e revoluções, ou para o adormecimento da consciência. Tanto de um lado quanto de outro, a primeira vítima é a individualidade, que é posta em cheque com chavões como “quem não está com o povo é contra o povo”, ou então com a famosa, mas mal interpretada frase: “a voz do povo é a voz de Deus”. E eu pergunto: de qual Deus? Que deus doido, neurótico e maluco seria este? O mais irônico é que essa frase, hoje usada para validar o consenso, tinha originalmente um propósito completamente oposto.

A frase vox populi, vox dei, na verdade, foi um alerta justamente para que não se desse ouvidos às multidões. Teria sido um alerta dado por Alcuíno de Iorque, um estudioso e conselheiro do imperador Carlos Magno, por volta do ano 798 d.C. Alcuíno estava escrevendo a Carlos Magno para aconselhá-lo a não se deixar levar pelas opiniões inconstantes da multidão; ele estava, na verdade, refutando a ideia de que a voz do povo era a voz de Deus. A frase completa é: “Nec audiendi qui solent dicere, Vox populi, vox Dei, quum tumultuositas vulgi semper insaniae proxima sit.” Traduzindo: “E não se deve dar ouvidos àqueles que costumam dizer: ‘A voz do povo é a voz de Deus’, pois o tumulto da multidão está sempre muito próximo da loucura.” Apesar dessa origem histórica clara, que adverte sobre a insanidade coletiva, o uso moderno da expressão distorceu completamente seu sentido.

No entanto, a frase é comumente usada para expressar a ideia de que a opinião da maioria, ou o sentimento popular, é de alguma forma infalível, correto ou possui uma autoridade divina. É frequentemente invocada em contextos políticos e sociais (especialmente em democracias) para sugerir que a vontade do povo deve ser respeitada como se fosse uma verdade absoluta ou um julgamento final. Basta observar os resultados dessa suposta “voz divina” na prática para questionar seriamente tal infalibilidade.

Se assim fosse, se a voz do povo fosse de fato a voz de Deus, as multidões escolheriam para seus governantes pessoas que representassem o melhor de seus atributos, e não o pior de um deus projetado à semelhança de seu estado mental desequilibrado. O povo seria a expressão mais sublime da reunião de todos em torno da sabedoria, e não da ignorância. O povo agiria por uma consciência coletiva lúcida, impregnada da mais elevada inteligência, sabedoria, amor e ética, e não se deixaria ser comandado como uma coletividade de idiotas, incapacitados de pensar e discernir, que precisam de líderes que os influenciam e os induzem a seguir por um caminho de loucura e separação em rebanhos para se voltarem uns contra os outros. E assim, esses líderes corruptores de consciências se mantêm no poder pelo tempo que quiserem.

O indivíduo age pelo seu nível de consciência e, se este está aquém da ética, o que se pode esperar é nada mais que os piores comportamentos e as piores escolhas coletivas. Porque aquilo que representava um potencial destrutivo mínimo na individualidade, agora se torna um potencial destrutivo perigoso e poderoso, que pode destruir tanto reputações quanto coletividades humanas vistas como adversários em uma guerra. Aliás, a culminância da loucura humana são as guerras, que são engendradas e comandadas pelos políticos canalizando a energia da loucura coletiva. Nós não nos damos conta ainda que as guerras são o resultado da soma dos conflitos internos não resolvidos de cada indivíduo, projetados sobre inimigos externos imaginários. A soma dessas emoções e pensamentos forma um campo de energia altamente destrutivo na psicosfera planetária e, onde se encontram os elementos críticos, essa energia fomenta a agressividade, e assim começam as guerras. Não é por acaso que a humanidade já passou por duas grandes guerras mundiais, além das milhares de guerras ao longo dos milênios, e vive sob a ameaça de mais guerras e até de uma eventual terceira guerra mundial – o que seria, caso viesse a acontecer, a destruição de mais da metade do planeta, com sérios efeitos sobre o sistema solar. Este cenário, embora pareça desolador, não é o fim da história, pois há um movimento contrário a essa loucura.

Reconheço que fui um tanto dramático até aqui nesta reflexão, mas isso não reflete um estado pessimista meu sobre o futuro da humanidade neste planeta. Consigo observar o que está ocorrendo subjacente a toda essa loucura de nosso tempo; vejo uma nova consciência despertando, e muitos são os que sustentam essa nova egrégora baseada no amor e na ética. Contudo, o bem não faz barulho e não mobiliza multidões para o combate do mal; ele é a manifestação própria da Inteligência Suprema que chamamos por Deus, o amor cósmico. Esta essência está em todo ser humano, manifestada ou ainda obscurecida pela ignorância. São muitas as possibilidades de transformar o mundo, mas só há uma maneira de fazer isso – mudar nossa mentalidade individualista. A partir dessa premissa, o ser humano consciente, ou autoconsciente, não se deixará mais ser conduzido aos enganos que vem cometendo, se libertará do medo de ser ele mesmo e assumirá sua responsabilidade na estabilização da paz no mundo pela sua própria pacificação interior. Quando essa transformação interna individual se concretizar, a própria lógica da expressão que iniciou esta reflexão será, enfim, invertida.

Então, não será mais “vox populi, vox dei”, mas “vox Dei, vox populi”.

Portanto, esta reflexão se encerra não com um veredito pessimista sobre a humanidade, mas com um convite à esperança fundamentada na responsabilidade individual. A verdadeira revolução, silenciosa e profunda, não está no clamor das massas, que historicamente ecoa a loucura, mas no despertar da consciência de cada um. À medida que mais indivíduos se libertam do medo e cultivam ativamente a ética, a paz interior e o amor – a “voz de Deus” inata – eles fortalecem a nova egrégora do bem. É nessa transformação individual, que se multiplica e se espalha sem alarde, que reside o potencial real para que, um dia, a voz coletiva do povo seja, de fato, a expressão lúcida e serena da sabedoria divina.

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